1 – Turismo é coisa séria
Turismo não é bobagem, não é um assunto menor. Ele tem um impacto gigante e que talvez tenha ficado agora mais palpável do que nunca. Foi o turismo que transformou uma epidemia concentrada no interior da China em uma pandemia que chegou no planeta inteiro em poucos meses.
É bom falar disso porque, nas discussões sobre sustentabilidade, às vezes parece que turismo não precisa ser discutido, importante são as atitudes do dia a dia: reciclar seu lixo, comer orgânico, andar mais de bike e menos de carro, aposentar a garrafinha e o canudo de plástico. “Viagem é só de vez em quando, não preciso me preocupar com isso”, pensam alguns.
Mas não é assim. O turismo é uma força superpoderosa de transformação. Mais de 1 bilhão de pessoas cruzam as fronteiras entre países todos os anos. Ele é 10% do PIB mundial. Então, consumir de forma consciente quando você viaja faz muita diferença.
2 – Turismo é via de mão dupla
Turismo responsável de repente virou a palavra do momento. O Ministério do Turismo acaba de lançar um selo chamado “Turismo Responsável – Limpo e Seguro”, para empreendimentos que seguirem os protocolos de biossegurança criados pelo MTur com a Anvisa, para a retomada pós-covid.
De repente, ficou muito claro pra todos que o turismo é uma via de duas mãos, que qualquer encontro tem um impacto e que as duas partes são igualmente responsáveis pela qualidade daquele encontro – o viajante e o anfitrião. Eu não te contamino e você não me contamina: isso virou turismo responsável nesse momento. Pra gente é assim também, mas gostamos mais de falar do contágio do bem: o turista pode impactar positivamente o lugar que ele visita, e o anfitrião pode deixar aprendizados que transformam esse viajante.
Turismo sustentável, verde, do bem, responsável, é uma coisa só: quando a presença do viajante melhora o destino e a vida de quem mora lá, e quando a conexão com o anfitrião, seu ambiente e sua cultura enriquece pessoalmente o visitante. Viajar assim vai além de deixar renda pra comunidade e prestigiar seu modo de vida, sua cultura, arte, culinária, mas é um jeito mais gratificante.
3 – Há outros modos de vida possíveis – e talvez mais satisfatórios
Na pandemia, muita gente foi forçada a experimentar um novo jeito de viver. Especialmente quem mora em cidades, e quem pode trabalhar de casa ou ficar sem trabalhar por um tempo, e se proteger do coronavírus. Enfim, quem pode discutir como viajar de novo pós-pandemia.
E muitos descobriram prazeres inesperados, ou ao menos coisas interessantes. Perdeu-se algo, como a liberdade de ir e vir, renda, encontros com os amigos, aquele show, aquela festa. Mas veio a chance de perceber que home office funciona (e que pode significar muito mais liberdade de escolhas de vida). Ganhando mais tempo com filhos, por exemplo. Ou com os pais. Descobrindo um hobby, o prazer de cozinhar, de cultivar plantas.
Assim, as pessoas estão sendo obrigadas a refletir: com tantas interdições, o que sobra na vida? O que realmente é importante?
Ser mais autosuficiente de repente tem sido uma questão importante pros urbanóides. Em abril, mês de isolamento social em boa parte das metrópoles brasileiras, a pergunta “Como fazer pão?” bateu recorde de pesquisas no Google. Como fazer bolo, panqueca, brigadeiro também cresceram. E com as notícias de desabastecimento nos supermercados, quantas pessoas não pensaram em plantar hortaliças, em começar uma horta?
Um fenômeno que aconteceu na Amazônia, por exemplo, foi muito bem retratado por uma matéria da BBC Brasil. Quando cidades como Manaus (AM), Santarém e Belém (PA) começaram a ter UTIs lotadas, lockdown, uma legião de desempregados pelos negócios que foram fechados, houve um êxodo de pessoas das cidades para suas comunidades natais, em Reservas Extrativistas (RESEX) do Xingu e do Tapajós-Arapiuns, por exemplo.
Motivo: ainda não havia infecções por lá e a quarentena se resumia a não ir para as cidades – mas não se ficava trancado em casa, todos iam para a roça, tomavam banho de rio, podiam jogar bola com os amigos. E a floresta ali garante alimentação abundante, mesmo se você não tem emprego, não tem dinheiro. As comunidades fizeram ajustes, por exemplo, trocaram farinha de trigo e óleo de soja, que antes compravam na cidade, por farinha e o óleo do babaçu, que acessam na reserva. E vida que segue.
De repente, a floresta, que para muitos turistas mais ressabiados parece significar um local de risco de pegar doenças tropicais, de não ter atendimento médico de qualidade por perto, etc, pode garantir segurança alimentar e sanitária numa pandemia. Desde que seja uma floresta preservada, como nessas reservas extrativistas.
4 – Turismo não é só paisagem, é gente
A pergunta é: depois desse choque de realidade que tomamos com a pandemia, quantos de nós queremos investigar esses novos modos de vida? Porque viajar é uma das maneiras mais eficientes pra isso. Desde que a gente consiga deixar de lado a ideia de que turismo é paisagem, é lugar.
É intuitivo pra muitos de nós escolher a viagem pela paisagem/clima ou atração turística. Quero praia, ou quero montanha, quero parque aquático, quero neve. Só que não! A beleza do turismo responsável é você despertar pro fato de que um destino é bem mais que isso, ele é as pessoas daquele lugar, o modo de vida delas, o que elas comem, que música ouvem, como elas
festejam. Então, o que falta é colocar as pessoas aí nessa equação: turismo é gente indo encontrar gente. Agora com a pandemia isso ficou muito mais claro.
Por isso nossa causa vai além da preservação da natureza. É também a cultura e a qualidade de vida no destino que precisam ser cuidadas pra que ele se mantenha incrível sempre. E, principalmente, preserve sua autonomia e autenticidade. No nosso mundo globalizado, essa autenticidade é cada vez mais valiosa. E é porque é da diversidade que tiramos os maiores aprendizados.
Em todas as viagens experimentais que a Garupa faz levando viajantes para comunidades sertanejas, ribeirinhas, indígenas, o feedback que recebemos dos viajantes é muito parecido. As pessoas encontram, num ambiente de muito menos riqueza material do que elas estão habituadas, outros tipos de riqueza que as impressiona: além da natureza em si, a consciência dessas populações
daquilo que é de fato essencial pra uma vida plena, autossuficiência, o domínio dos processos da natureza. Na cidade há distrações demais, a vida pode ser complexificada ao extremo, muitas vezes não em prol não do bem-estar, mas da viabilidade de ter aquela gente toda reunida num espaço escasso.
As pessoas dizem nas fichas de avaliação da experiência coisas como: “O modo de vida nas comunidades dá sentido à própria vida”; “A viagem foi um marco de grande transformação na minha trajetória”; A vivência da cultura das comunidades indígenas mostrou a superioridade na educação das crianças, no que diz respeito ao cuidado e à autonomia”.
Sem querer romantizar esses outros modos de vida, mas o encontro de culturas que o turismo de base comunitária promove é um choque, te transforma, te ensina demais.
Pensemos em todas as discussões que estamos tendo para a retomada do turismo mundial. Como fazer dos aviões, dos hotéis, dos parques ambientes com mais biossegurança na pandemia?
Na experiência turística de base comunitária muitas dessas questões nem se colocam: se consome comida local, os trabalhadores moram nos arredores, eles vêm trabalhar a pé, não pegam transporte coletivo lotado, há espaço em abundância para o distanciamento social, há ventilação de sobra, a densidade demográfica é muito baixa. Mas, claro, continuamos com o desafio de saber quem pode entrar, quem pode sair. Porque esse tipo de turismo é, na verdade, pessoas indo encontrar pessoas. Essa é a beleza.
5 – Mesmo sem viajar, dá pra ser um viajante responsável
Viajar ou não nessa pandemia muitas vezes não é uma questão de escolha. Por exemplo, visitar terras indígenas agora está proibido por tempo indeterminado, por portaria da Funai e Ministério da Justiça.
Infectar uma aldeia põe em risco não só a vida de pessoas, mas a própria existência de uma etnia, a permanência de histórias e tradições que, em culturas orais, estão só ali, junto aos anciãos, por exemplo.
Não podemos navegar pelo Rio Negro agora, como temos feito nos últimos 4 anos, em 13 expedições experimentais da Garupa em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA) e com as associações locais ACIR (Associação das Comunidades Indígenas e Ribeirinhas) e a FOIRN (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro). Mas o vínculo que os quase 120 viajantes que estiveram com a gente criaram com esse lugar é parte de uma rede de apoio que pode fazer a diferença para a segurança e o bem-estar dessas populações indígenas.
Apoiar comunidades e destinos que têm feito o turismo responsável acontecer, no momento, pode ser comprar o que eles produzem, por exemplo. Chocolate, mel, compotas, artesanato. Porque é importante também alguns destinos que vivem prioritariamente do turismo darem um passo atrás agora. É crucial que essas comunidades não dependam exclusivamente do turismo, para a própria segurança dos moradores – ele tem que ser uma atividade complementar. Isso fica ainda mais claro agora, quando ninguém mais viaja.
Outra opção, por exemplo, são as campanhas de suporte a essas comunidades. No Rio Negro (AM), as mulheres indígenas da FOIRN estão coordenando a campanha de doações Rio Negro, nós cuidamos, onde cada um pode doar dinheiro para que as comunidades possam se abastecer, se informar e se isolar para enfrentar a pandemia. No Oiapoque, o Instituto Iepé está levantando recursos para apoiar os povos indígenas da região do Amapá e norte do Pará, num plano de combate à Covid-19 em 10 Terras Indígenas dessa região. Na Península de Maraú (BA), a Pousada Lagoa do Cassange, indicada no Guia Garupa do Brasil Autêntico, também organizou uma campanha de doação que já conseguiu recursos para manter 60 famílias da comunidade local, desde que começou a pandemia (comunidade onde vivem seus colaboradores). Assim como no Rio Negro, visitantes que lá estiveram puderam somar forças, divulgar em suas redes e colaborar para o alcance desse movimento.
Essas campanhas agora são a tarefa de casa nesses lugares, para que a vida seja possível. E se ela for, a retomada do turismo vai ser possível também.